sexta-feira, 25 de julho de 2014

Sobre perdas, lembranças e saudades

Na vida somos sempre preparados para ganhar, nunca perder. E se o que perdemos têm vida, aí então nos frustramos e se essa perda é a perda do ser com vida...

 Já se diz há muito, que a única certeza que temos nessa vida, é que um dia todos morrerão. Porém, essa sentença certeira, não conforta, afinal de contas, como a morte é o grande mistério nunca sabemos quando, como e a razão.

A saudade aparece então como o único antídoto para o consolo. As lembranças do tempo vivido e compartilhado acalentam a alma.

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Lembro até hoje da morte do meu tio Pedro, em 1988, eu tinha 4 anos, foi a primeira vez que perdi alguém tão próximo e tão querido. Nunca esqueço do desespero dos meus avós, das minhas tias, da minha mãe, eu sofri também, entendia aquela movimentação, mas não tinha ainda discernimento pra compreender qual o tamanho que a falta dele nos faria no decorrer dos anos.

Depois do tio, acho que uns 3 anos depois, faleceu Iaiá, minha bisa, Otaviana Lira Tavares, nome forte assim como ela, uma mulher alta e robusta. As lembranças com Iaiá estão entre as melhores da infância. Iaiá era cega, perdeu a visão na juventude. Chegava a sua casa na pontinha dos pés, com todo cuidado pra não fazer barulho. E ela logo dizia: “- Quem taí?! – Advinha quem é?! – Ah eu já sei, é a Valéria da Solimar”. Eu ficava frustrada e não entendia sua aguçada audição. Aí depois de ‘descoberta’ caíamos na gargalhada. Iaiá, usava saias longas e tinha sempre um cachimbo como companheiro,  se divertia quando ia pra minha casa e pedia pra colocar a música do Sérgio Reis, balançava as mãos, cantarolava, até hoje é impossível ouvir e não lembrar: “E nessa casa tem goteira, pinga ni mim, pinga ne mim, pinga ne mim”.

Tão criança e já havia perdido tanto. Tantas referências de vida importantes. Em 1999 foi um ano difícil. Perdemos meu avô Joaquim em fevereiro e minha tia Alice no fim do ano. Mais uma vez, conhecemos de perto a dor, a tristeza e a saudade nos sufocaram. Quando íamos passar o fim de semana na casa dos meus avós, minha mãe dizia: “- Quando chegar dê um cheiro pro seu avó. – Aaaah mãe, mas o vô cheira a “porronca” (fumo). – Pois cheire assim mesmo”. Certa estava minha mãe, era o melhor cheirinho de porronca que alguém poderia dar. Aquele cheiro significou e significa até hoje, quando sinto me faz voltar no tempo e não esquecer.

Tia Alice era a baixinha mais zangada que eu conheci. Meu nome Flávia, foi sugestão dela. Mamãe queria que meu nome fosse Alba Valéria, mas minha tia interviu e sugeriu, quase que uma imposição, que fosse Flávia. Era a única da família que me chamava pelo primeiro nome.  – Tia me empresta seu pente pra ir lavar o cabelo no riacho. “– Toma Flávia, mas não perca, se perder vou te fazer mudar o curso do brejo até encontrar”. E lá íamos nós, eu e minhas primas com esse bendito pente emprestado rezando pra não perder. Perdemos, mas depois de quase mudar o curso do riacho encontramos, pra nossa alegria. Era carinhosa também, engraçada. No final de 1998 estávamos todos reunidos na chácara, a família inteira reunida. Minha última lembrança.

Depois dessas veio o mais duro golpe, quando minha avó faleceu em 2003. Foi a mais sofrida das perdas, a mais desesperada, a mais sentida. Difícil explicar o que minha vó representou/representa pra mim enquanto convivemos juntas, era de fato minha mãe duas vezes.  A nossa despedida foi uma das coisas mais lindas que vivi até hoje, eu estava há um ano na faculdade e ela tinha muito orgulho de ter uma neta na universidade, a primeira da família (até então). “– Eu te amo tanto minha rosa paruara (já pesquisei, mas nunca encontrei o significado, mas deve ser algo bom, porque ela sempre nos chamava assim), mas a vó sabe que essa é a última vez que vamos nos ver. – Deixa de besteira vó, não é nada, a senhora ainda vai à minha formatura. – Não vou não minha filha”. E entre lágrimas nos abraçamos, juramos amor pra sempre e um mês depois, no dia 11 de setembro de 2003 ela faleceu. Minha formatura foi pra ela, quatro anos depois.

Quando parecia, que a vida tinha dado uma trégua nas perdas, lá se veio mais uma. Tia Lenir faleceu em outubro de 2004. Esposa do meu tio Julimar e dona das mãos mais perfeitas pra cozinhar que conheci até hoje. Tia Lenir, junto com tia Lu e tia Cátia, eram/são nossas mãos de fadas. Era uma mulher batalhadora, lutadora mesmo, eu admirava. Tia Lenir formava um trio com minha mãe e a tia Francisca, inseparáveis. As cunhadas irmãs. Sempre achei isso muito bonito. Nosso último encontro foi bem no meu aniversário em agosto de 2004, em Goiânia. “– Eu não tenho dinheiro pra comprar presente, mas vou cozinhar o que você quiser”, disse ela. E assim foi. Ainda bem que nos despedimos com festa e seu sorriso é minha última lembrança.

Em outubro de 2012, fomos obrigados a nos despedir do tio Julimar, tio Julica. Dia de dor e tristeza. Meu tio era reservado, quieto, homem trabalhador e muito querido. Quando morei um tempo com eles em Goiânia e meu tio trabalhava de vigia numa padaria, eu e meus primos ficávamos contando as horas pra ele chegar e trazer coisinhas deliciosas pra gente. Tempo bom.

No último dia 20 de julho, foi outra dor sentida. Outra perda e muitos corações dilacerados pela tristeza. Perdemos o irmão do meu pai, Natanael Ribeiro, tio Natal. Embora a convivência não tenha sido a do cotidiano, a dor e o sofrimento de perder um parente querido, ainda mais de forma tão trágica, é desolador. Tio Natal partiu deixando um exemplo de homem honesto e trabalhador. E mais uma vez nós ficamos amparados na saudade.

São tantos os que perdemos, tanto que sofremos. E por mais que a vida ensine, nunca estamos preparados. Pra morte não há quem esteja calejado, acostumado, conformado. Para perder pra morte, estamos sempre despreparados e amedrontados.

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Certa vez assisti um documentário sobre a Guiana Francesa e lá mostrava um funeral diferente, as pessoas sorriam, cantavam, dançavam. Era uma festa. O “divertimento” era uma forma de celebrar e comemorar a oportunidade de viver, a oportunidade de compartilhar, de aprender, de ser feliz, com quem partiu. E embora, as nossas despedidas nunca sejam momentos de celebração da vida, afinal de contas, choramos a partida, sinto, que devemos sim celebrar e agradecer por cada ano vivido de quem esteve conosco, exemplos de grandes mulheres e grandes homens, um consolo pra dor da saudade.

“E a vida, e a vida o que é, diga lá meu irmão, ela é a batida de um coração ou ela é uma doce ilusão...